21.4.08

NÓS NÃO QUEREMOS MIGALHAS

...migalhas dormidas do teu pão , raspas e restos me interessam...
(Maior abandonado Cazuza/Frejat)



O desafio da inclusão : o papel das artes
Fábio Adiron*
A convite do núcleo Morungaba (http://www.morungaba.org.br/) participei hoje de um debate sobre esse tema, junto com a Mara Gabrili (Secretária Especial da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida) e a Helena Maranhão (da cooperativa Pé com Mão da APAC Associação de Pais e Amigos da Criança com Deficiência Neuromotora).
Qual é o desafio da inclusão ?
O grande desafio da inclusão é acabarmos com a sua necessidade. Ponto !
Uma sociedade que não precise mais ter secretarias especiais, porque todas as secretarias estarão preocupadas com todos.
Uma sociedade que não fique exageradamente feliz quando a Helena conta que acabou de se formar em Biblioteconomia.
Uma sociedade onde o Fábio não precise adjetivar a educação que será de todos.
Esse termo só aparece nas nossas vidas quando começamos a nos dar conta de quantos estão excluídos, e estão excluídos por motivos essencialmente econômicos, não vamos nos iludir. Apesar de estarmos perto do Natal, papai noel não existe !
Não acreditem que os escravos foram libertados por idealismo, também existia um pouco disso, mas foram libertados porque os ingleses precisavam de mais mercado consumidor.
As mulheres só começaram a ser incluídas quando se tornaram um mercado de consumo independente dos salários dos maridos e pais.
Os homossexuais são a atual coqueluche da inclusão porque as empresas descobriram que eles tem dinheiro ! E consomem.
Os pobres estão sendo incluídos porque o consumo das classes C e D têm aumentado consistentemente nos últimos anos. Ainda não estamos falando dos miseráveis, esses ainda não são mercado de ninguém.
As pessoas com deficiência são aqueles "estorvos" que geram um monte de despesas sem retorno (adaptações, reformas, versões adaptadas....). O livro digital para cegos não decola porque afronta interesse econômicos. A inclusão escolar tem problemas porque vai contra o modelo competitivo onde cada um quer ser melhor que o outro. A inclusão no trabalho tem de ser enfiada goela abaixo porque essas pessoas "pouco produtivas" (no conceito da sociedade globalizada) nunca seriam contratadas de outra forma.
O desafio que temos para realmente termos uma sociedade que seja justa e acolhedora para todos, é o de construirmos outra sociedade, em que os valores humanos sejam mais importantes que o tamanho do saldo bancário ou as demonstrações de status, de posses e de poder.
Enquanto o ser humano for valorizado pelo que ele tem (e cada vez quer ter mais) e não pelo que ele é, não viveremos em uma sociedade que dispense o uso da palavra inclusão.
Qual é o papel das artes
Nessa perspectiva, qual é o papel das artes ?
A definição original e abrangente de arte (do latin ars, significando técnica ou habilidade) é o produto ou processo em que conhecimento é usado para realizar determinadas habilidades, ou num sentido mais amplo é o conjunto das atividades humanas que visam a expressão de um ideal estético através de uma atividade criativa
Em algumas sociedades, as pessoas consideram que a arte pertence à pessoa que a criou. Esse é o conceito de propriedade, de arte como valor de mercado, de copyright .Geralmente pensam que o artista usou o seu talento intrínseco na sua criação. Essa visão (geralmente da maior parte da cultura ocidental) reza que um trabalho artístico é propriedade do artista. É o conceito da exclusão do acesso a esse capital privado.
Outra maneira de se pensar sobre talento é como se fosse um dom individual do artista. Os povos judeus, cristãos e muçulmanos pensam dessa maneira sobre a arte. É um conceito individual na criação mas não obrigatoriamente no acesso à coisa criada.
Outras sociedades pensam que o trabalho artístico pertence à comunidade. O pensamento é levado de acordo com a convicção de que a comunidade deu ao artista o capital social para o seu trabalho. Nessa visão, a sociedade é um coletivo que produz a arte através do artista, que apesar de não possuir a propriedade da arte, é visto com importância para sua concepção.
Esse sim é um conceito inclusivo, todos podem criar e produzir a partir de um mesmo contexto social, e a comunidade que ofereceu esse contexto social vai ser beneficiária dessa cultura que ela mesma gerou.
Mas, para chegarmos a essa concepção precisamos renunciar a alguns absolutos, como diria o Prof Lino de Macedo e, agora falando especificamente das pessoas com deficiência, se, de um lado precisamos lutar para mudar os dogmas da sociedade, também precisamos entender que a pessoa com deficiência é parte de um todo, e não o centro do universo.
Não podemos pensar numa "arte do deficiente" isolada do seu contexto social, senão ela mesma reforça a sua exclusão, e só criamos sub comunidades, cada vez mais isoladas. Um grupo de teatro de autistas, um coral de cegos, uma vernissage de pintores surdos, não é arte inclusiva.
A Helena é uma bailarina. Ponto. Não é uma bailarina com deficiência. O Togu não é um pintor com Síndrome de Down, é um pintor. Ponto. Da mesma forma que o Stevie Wonder não é um músico cego, nem o Itzhac Perlman é um violinista cadeirante. Alguém alguma vez se referiu à Beethoven como aquele compositor surdo ?
Inclusão não tem adjetivos, não tem patologias, nem situação social. Ou é ou não é.
Que possamos todos ser artistas sem precisar falar em inclusão.
O apaixonado Cazuza declarava estar satisfeito apenas com as migalhas que pudessem sobrar da mesa do objeto do seu amor, apenas um pouquinho de atenção seria suficiente para que ele deixasse de ser um maior abandonado, afinal, ter mais do que isso lhe parecia um sonho inatingível.

Infelizmente as minorias excluídas da nossa sociedade demonstram, a cada dia, que as migalhas dos serviços públicos e privados lhes tem sido satisfatórias, depois de tanto tempo sem ter acesso sequer às sobras, tudo que vem é lucro.

Alguns alegam que essa postura é apenas a cautelosa forma de comer a sopa quente pelas bordas, mas será que isso não é apenas conformismo? Nós, que estamos envolvidos em um movimento que busca a inclusão, não deveríamos aceitar as migalhas do poder, mas dividir o pão com todos.

Não queremos o favor e a comiseração de transporte público gratuito; queremos ônibus, trens e metrôs que sejam acessíveis a todos.

Não queremos somente rampas e elevadores espalhados pela cidade; queremos tratamento digno como seres humanos.

Não queremos isenção de impostos; queremos uma distribuição de renda mais justa que permita a todos participarem do mercado de consumo.

Não queremos cotas que nos concedam vagas em universidades; queremos uma educação de qualidade que nos dê as mesmas chances e oportunidades que as classes privilegiadas.

Não queremos cotas que obriguem as empresas a nos empregar (coitadinhos de nós...); queremos formação profissional para nos candidatarmos de forma digna aos empregos.

Não queremos filas especiais; queremos atendimento decente para todos.

Não queremos educação especial que segregue aqueles que a sociedade prefere fingir que não vê; queremos uma educação que seja especialmente qualificada para atender cada ser humano.

Não queremos beneficência; queremos respeito e acesso aos bens e serviços.

Enquanto continuarmos a pedir migalhas, o máximo que a sociedade vai nos conceder são exatamente elas. Pior, o poder vai continuar acreditando que está nos fazendo um grande favor.

Manter esse discurso é um problema ideológico, por que o que se esconde atrás dessa atitude é a rejeição da diversidade como valor humano e a perpetuação das diferenças entre cidadãos de primeira e segunda classes, ressaltando que suas diferenças são insuperáveis de uma forma determinista e, mesmo que dividam o mesmo ônibus, a mesma mesa e a mesma cadeira, seguem caminhos diferentes e, às vezes, opostos.

*Fábio Adiron é moderador do Grupo Síndrome de Down no Yahoo Grupos e membro da Comissão Executiva do Fórum Permanente de Educação Inclusiva.
Observação importante : esse texto não está sujeito a copyright e está sendo distribuído em meio digital.

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